Todo ano vejo a mesma história se repetir - uma repescagem de filmes e músicas que começa em dezembro, se estende para o início de janeiro e é interrompida apenas pelo frio prazo da lista de melhores do ano do Scream & Yell, da qual sou votante. Sempre fica aquela ansiedade melhor definida pelo hit viral “Can’t hug every cat”, a frustração pela consciência da impossibilidade de ver todos os filmes do ano ou ouvir todas as músicas do ano. Como que a People Magazine tem a empáfia de eleger, anualmente, a pessoa mais sexy do mundo se ela não bate de porta em porta catalogando cada ser humano do planeta Terra? Como eu posso dizer com toda a certeza absoluta que a música que mais me agradaria nesses 365 dias foi realmente uma das que ouvi?
Talvez seja melhor assim. Seja melhor começar a sua lista já com o primeiro degrau de subjetividade, o da amostragem. Essa lista não tem validade, pois sua criadora não consumiu todas as possibilidades de entretenimento do mundo. Mas pelo mesmo motivo nenhuma lista, seja ela do Oscar, do San Pellegrino Top 50, do Prêmio Nobel, é válida. Mesmo inválidas, listas são exercícios divertidos de memória, um esforço de catalogação contra a passagem inclemente do tempo e uma forma de recomendar coisas, pros outros e até pro nosso eu futuro que pode se esquecer de obras pelo caminho. Somos todos bibliotecários ávidos dos nossos próprios gostos.
O Panda Vermelho é chamado em algumas línguas de “Lesser Panda”, ou panda inferior, panda menor. Os prêmios do Guia Michelana levam esse título porque são, como já apontei, irrelevantes, mas até o irrelevante pode ser adorável para muitos. Vamos à primeira edição dos Lesser Pandas de Ouro?
Melhor disco internacional
05. MJ Lenderman - Manning Fireworks
Guardo um orgulho pueril relativo ao fato de que, quando algo desponta nos fones de amigos, normalmente eu já ouvia há tempos. O motor disso é meu caráter onívoro, que não me impede de clicar em coisas que não pareçam completamente adequadas ao meu gosto ou que não tiveram as aprovações certas dos sites certos. Isso me fez chegar primeiro no Fontaines DC, hit do ano (merecido), e também no queridinho slacker MJ Lenderman, que eu amava desde que cantava músicas de barco e falava sobre o jogo da ressaca do Michael Jordan, mas que finalmente foi aclamado pelo seu trabalho de revival do alt-country de bandas como Uncle Tupelo, Wilco, Sun Volt, Drive-by Truckers e Old 97s.
04. RM - Right Place, Wrong Person
They call me artist, they call me idol. Kim Namjoon lançou sua obra prima em um ano lotado para o rap de vanguarda, com discos brilhantes de Kendrick Lamar, Tyler the Creator e Doechii, mas colocou uma dose do rock alternativo do Balming Tiger na mistura de hip-hop e jazz da sua cena e conseguiu uma pequena vantagem, cravando seu lugar na lista. Um disco de abandono de fachadas e expectativas, menos preocupado com a beleza das coisas que o Indigo, mais entregue ao caos.
03. Cindy Lee - Diamond Jubilee
Diamond Jubilee te faz um pedido um pouco raro para o ouvinte submerso na cultura de playlists mistas e canções de 2 min dos tempos atuais. Suas canções são bem acessíveis, sutis, levadas pela persona drag do canadense Patrick Flegel com mais do que algumas pitadas de inspiração retrô. O seu caráter experimental fica principalmente no formato de lançamento - um só disco de mais de 2h de duração, ausente do maior serviço de streaming mundial. Um disco que exige o seu consumo como disco… que ousadia.
02. Billie Eilish - Hit me hard and soft
É impossível separar o subjetivo na análise musical, mas é o que tentamos fazer como críticos. Meu primeiro contato com esse disco foi mágico, com fones de ouvido em um trem que ia de Milão para Veneza com destino à Biennale 2024. A paisagem italiana riscava a janela enquanto Billie cantava. Mesmo tirando o disco da paisagem, da ocasião, do encantamento, ele ainda impressiona como obra mais completa de Billie até hoje, um som que só vem com a segurança e confiança do autoconhecimento.
01. NMIXX - Fe3O4: Break + Fe3O4: Stick Out
A cultura se move, mas não da maneira linear e entediante que divide tudo entre passado e presente, futurista e retrô. O movimento da cultura é entrópico, influências trombam como moléculas em uma reação química entre dois elementos que mudam assim que são colocados em contato. Essa reação não pode ser controlada ou impedida pela turma que acredita que a solução para a apropriação cultural é um culto a “pureza”. No universo do NMIXX não existem barreiras pra hibridização musical, e o funk de Sly Stone pode trombar com o Neoperreo latino, o rock do Balming Tiger (cujos membros, tal qual no disco de RM, surgem aqui dentre os compositores) e o eletrônico do revival de UK Garage. Um time multicultural que está reescrevendo as regras do K-Pop no meio de uma revolução do gênero.
Melhor música internacional
05. Doechii - Denial is a river
Uma música escrita como um diálogo de Doechii com sua consciência, com senso de humor e um flow viciante, cortando por toda a mesmice do cenário mainstream. Doechii já colheu os frutos dessa pancada no Grammy neste fim de semana, mas que bom que a música termina com um exercício de respiração - sinto que esse é só o começo de uma maratona para esse talento.
04. Charli XCX - Von Dutch
Y2K, Indie Sleaze, Brat Summer. Um dos fatores menos comentados do ano revolucionário de Charli é para mim o que cola todo o conjunto, não só do Brat como da sua carreira - Charli não tem medo do ridículo. Do ridículo positivo, da noção de que a distância entre trendy e cringe não é tênue, ela simplesmente inexiste. O diagrama de venn entre um manifesto e sua paródia é um círculo. Se você começa a usar o boné Von Dutch com sarcasmo ou com seriedade, não importa. Como vários outros adereços de cabeça recentes, o boné é a mensagem.
03. Billie Eilish - Blue
Metade do grande Hit me hard and soft de Eilish é uma ode ao autodescobrimento, metade é um reconhecimento doloroso das limitações de um outro (provavelmente seu ex, Jesse Rutherford). Ódio, rancor, desprezo ao ex são coisas que surgem em outras músicas do álbum, mas Blue guarda o golpe mais doloroso, a compreensão da humanidade do outro, cheia de falhas, limitações e traumas. A forma da música fortalece o conteúdo, transformando o monólogo em diálogo a partir da inserção cortante da voz de Finneas. Billie Eilish descobrindo o mais difícil da vida adulta: o de que às vezes entendemos a motivação até dos nossos maiores algozes.
02. RM feat Little Simz - Domodachi
Quase tribal em forma, Domodachi convida o ouvinte a dançar ao redor da fogueira, se perder em meio às sombras na caverna, invocar os espíritos, afastar energias ruins. A música meio que devolvida ao seu ponto de origem como catarse coletiva e experiência espiritual. Um homem que está no centro de um movimento que leva milhares à loucura em shows e eventos entende bem desse processo de euforia. A bateria de jazz que acompanha os versos da genial Little Simz leva a música a um ponto de não-retorno, urgente, imediato.
01. NMIXX - Dash
Talvez meu momento favorito na música em 2025 está no minuto 1:40 de Dash, do NMIXX, o momento em que Kim Jiwoo, a inexplicavelmente talentosa jovem rapper da banda, aproveita a interrupção da batida para alterar completamente o tempo da música, como se qualquer estrutura musical fosse apenas massa de modelar. Não é a única mudança drástica da música, e nem é a primeira vez que Jiwoo faz isso em uma canção. Mas a mistura de precisão (que vem com muito treino) e absoluto descaso por forma ou regra é o que torna o NMIXX a banda mais interessante para acompanhar no pop atual - e que torna Dash seu hino.
Melhor filme internacional
05. The boy and the heron
Uma viagem psicodélica por dois lutos (o da morte e o da infância) que acaba sendo a celebração mais bonita da vida em 2024. Um filme que pede uma certa entrega emocional do espectador, um abandono de cinismo bem grande, e ainda funciona como um convite de Miyazaki para seu filho (e para nós), um convite para continuar inventando e sonhando.
04. Do not expect much of the end of the world
No outro pólo do cinismo temos o novo filme de Radu Jude, tão seco que chega a ser árido. Do not expect é um de dois filmes dessa lista que tocam na absoluta desumanização da força de trabalho nos dias de hoje, vista da janela do carro de uma assistente de produção flertando com o burnout absoluto numa Romênia tratada pelo resto da Europa como chão de fábrica de mão de obra barata e legislação folgada.
03. Red Rooms
Falta um pouco, no terror pós-a24/neon, do inexplicável. Faltam personagens cuja lógica é menos psicologizada pelo filme, menos palatável para nós. Filmes que incomodem menos pela relação que eles tem conosco e mais pela “otherness”. Não queremos, de maneira alguma, o conforto de se ver nessa personagem e trama, que avança brutalmente sem mostrar uma gota de sangue. Um filme que só solta seu pescoço nos créditos finais, uma experiência completamente visceral de choque.
02. Anora
Anora não é a heroina feminista que a internet parecia exigir que ela fosse. Ela não é autossuficiente como o discurso atual exige que qualquer personagem o seja para ser considerado forte, inspirador. Anora é uma comédia screwball com um coração mole numa era que exige estoicismo de todos, numa era em que procurar (ou encontrar) amor é uma ofensa. Ao final de Anora eu percebi que soltei uma lágrima agridoce, triste pelos traumas e obstáculos da personagem, mas feliz ao perceber que ainda tem gente que gosta de gente fazendo cinema por aí.
01. The Beast
Falando em gente que gosta de gente, The Beast é mais um poema de Bertrand Bonello sobre a importância de ser humano. “I want to be human before I do some art”, os versos de Yun de RM e Erykah Badu repetiam na minha cabeça enquanto via a luta da protagonista contra três tipos de desumanização em três diferentes eras, a do patriarcado, a da misoginia, e a do tecnofascismo. Um filme que tenta falar de tudo, do espírito do tempo, e quase consegue. Até na sua incapacidade de falar de tudo, sua tentativa é mais nobre que o vazio ao seu redor.
muito feliz de ver Blue nessa lista porque acho de uma grandeza imensa e infinitamente melhor que birds :p