O estudo de tendências, a área que dedico parte da minha carreira, depende de duas coisas - análise de dados e observação de contexto social e comportamental. Posso dizer com segurança (e o disse, mais de uma vez, perante figuras da indústria etílica e de hospitalidade) que a diminuição do consumo de álcool veio para ficar. Os números apontam para isso. O contexto social e comportamental aponta para isso. E essa tendência cresce junto com uma nova geração de consumidores que está, pela primeira vez, ditando a sua forma de consumir álcool (que não é, ao contrário do que a velha guarda quer acreditar, inferior ou menos refinada que a dos millennials ou a dos boomers). Vou além e afirmo: essa é uma mudança positiva.
Nem toda mudança positiva, entretanto, acontece por motivos positivos.
O objetivo desse texto não é ter uma grande introdução, sacadas excelentes, exibir . Também não é uma dessas propagandas disfarçadas de manifesto que a indústria etílica está soltando quase que toda semana - eu não estou vendendo bebidas para meu leitor então não tenho nenhum interesse pessoal em seus hábitos no momento. Mas em 2024 o panorama discursivo ao redor do álcool instalou uma pulga atrás da minha orelha, me tirou algumas horas de sono e foi elevando a minha preocupação até me obrigar a tentar estruturar o melhor possível um desabafo escrito que pode irritar algumas pessoas.
Minha tese é: o discurso abstêmio atual, em um efeito estranho de ferradura, prova o tanto que naturalizamos traços do alcoolismo em nossa geração.
Antes de continuar com argumentos, aponto para o espelho: eu estou bebendo cada vez menos. Durante meu tempo na indústria do vinho eu tinha uma política pessoal - sempre garanti que o número de dias em que bebia, em uma semana, fosse menor que o número de dias em que não bebia, mantendo uma proporção aproximada de 3/4. Isso me levou a ser uma embaixadora de vinhos que bebia, a trabalho, em dias de semana e passava grande parte do fim de semana sem beber. Acredito que trabalhar com álcool exige um respeito muito grande ao potencial destrutivo da bebida na vida do profissional, uma vigília mais constante de sua relação com o consumo. Nesse período já comecei a explorar o universo de drinks sem álcool, cervejas não alcóolicas, xaropes de diferentes sabores para terminar o dia com uma sodinha diferente. Acima de tudo, isso nunca pareceu, de maneira alguma, um sacrifício pessoal.
Desde que saí da indústria tenho bebido ainda menos. Os motivos? Diversos, que vão desde o simples fato de que bebidas são caras até a atual diversidade de opções interessantes não alcoólicas (unida a uma certa falta de opções muito interessantes de coisas alcóolicas novas, intrigantes e diversas, quase um certo tédio etílico). Quando falo que estou bebendo menos e divulgo a cena “no and low” (sem álcool ou com baixo teor alcóolico) a resposta que eu recebo de pessoas que também estão diminuindo seu consumo me preocupa um pouco, não pelo ato, mas pelas motivações descritas.
A primeira coisa que me preocupa é o abstêmio pintando esse gesto como algo muito difícil - um enorme sacrifício pessoal - e até mesmo criando “um mês sem álcool” ou desafios similares. Essa ideia de privação de algo trivial se transformando em uma prova enorme de força (um mês sem álcool, um mês sem redes sociais, um mês sem açúcar, um mês sem comprar novas roupas) já aponta para uma banalização da compulsão.
Sempre uso o exemplo da batata frita - eu amo batata frita, profunda e intensamente. Em diversos dias eu deliberadamente desvio o rumo do meu dia para poder almoçar ou jantar algo que inclua batata frita. Mas um mês sem batata frita não me parece um desafio. Sair com amigos e não pedir batata frita não me impediria de sair, não estragaria minha noite. Claro, eu adoraria batata frita agora, mas meu dia seguirá absolutamente idêntico sem batata frita.
Não devemos falar de vício como algo distante da nossa realidade em 2024. O país está sendo devastado pelos efeitos da promessa de gratificação fácil dos jogos de aposta virtuais. Países estão proibindo acesso de adolescentes a redes sociais que são construídas para consumo compulsivo. A comunidade LGBTQIA+ está vivendo o problema do “chemsex” e vê o consumo de drogas pesadas como metanfetamina sendo banalizado. Em 2030, a McKinsey prevê que 25% do consumo de carbono do planeta seja da indústria de vestuário, um aumento vindo a partir do consumismo desenfreado em plataformas como Shein e Temu. Na minha viagem aos EUA vi Walmarts de subúrbio com placas instruindo consumidores sobre como agir em caso de overdose de opioides. Amigos da comunidade médica relatam pessoas saindo de aulões de spinning ou hot yoga com sintomas de exaustão reservados antes a trabalhadores braçais.
(uma imagem do Twice em sua era Alcohol-free para aliviar o peso da conversa)
O que aconteceu com a capacidade de moderação? Bem, as indústrias aconteceram. Moderação não vende, na superfície, e recebemos estímulo da indústria da moda para comprar uma nova blusinha, da indústria das academias para fazer mais exercício para caber em mais uma blusinha, dessas duas para beber menos para ser mais saudável (e ir mais na academia), da de bebidas para beber mais quando você sair com aquela blusinha hoje à noite. Das redes sociais para postar as fotos da saída de hoje à noite e sair amanhã também para postar mais - obviamente com uma nova blusinha. Um raciocínio que ignora o conceito de LCV - Lifetime Costumer Value, ou o valor de um consumidor durante toda a sua vida, a ideia de garantir anos e anos de fidelidade e consumo sustentável em uma base estável.
Uma das frases que mais ouvi (sem julgamento moralista) em 2024 foi: “não estou bebendo mais álcool, prefiro consumir - insira aqui a droga sintética - nos rolês”. Para além da ortorexia (a ideia de que, ao contrário de outras substâncias, álcool engorda), essa frase mostra que o cerne do problema do abstêmio contemporâneo é que ele explicita que o papel do álcool na sua vida era puramente o de alteração da consciência. “Não preciso de álcool para me divertir” é uma frase óbvia. Ou deveria ser. Mas se você precisa de alguma outra coisa para se divertir no lugar do álcool, aí mora o problema. Uma discussão tangencial às regras engraçadas que a sociedade cria para o consumo - não beba em dias de semana, não beba sozinho em casa - regras que apenas reforçam o papel único de lubrificante social do álcool pro cidadão médio. Chego ao ponto de dizer que, se você está em um espaço social que você depende do álcool para considerar divertido, você provavelmente não gosta desse espaço e não deveria frequentá-lo.
Se o álcool não era uma questão de fruição, de sabor, aroma, harmonização, textura, a moderação nunca teve chance. Isso tira até o valor agregado do drink não alcóolico - se o sabor nunca foi uma questão, que bebam água. Quem gastará mais de 50 reais numa experiência sensorial que nunca foi importante para si, com ou sem álcool?
Tudo isso passa pela falta de nuances das redes sociais e pela dificuldade de começar uma conversa que não parta para nenhum extremo imediatamente. Um convite a um questionamento profundo do que o consumo de álcool significa no seu dia, e obviamente o que te leva a escolher não consumir, não gera muito resultado. Não é tão atraente quanto a torrente de manifestos dizendo absolutos prontos para a fácil divulgação no X, Insta Stories, Tik Tok. É uma discussão longa e filosófica demais, como esse texto que você separou parte do seu dia para ler.
O vício destrói vidas, e gera danos que vão muito além da deterioração do seu próprio corpo (uma mensagem difícil para a geração do autocuidado acima do cuidado com o outro). Vício é responsável por problemas sociais, aumento de violência doméstica, criminalidade, acidentes, morte. E vício não é uma práxis, é uma mentalidade. Compulsão é um modo de perceber o consumo de qualquer coisa como necessária e precisar se impedir ativamente de consumir.
No AA o adicto diz quantos dias ele está sem beber. Se você tem que contar seus dias sem álcool, em dias, em semanas, como um “janeiro sem beber” ou como uma promessa de vida… é para você que eu escrevo essa provocação.
colocações impecáveis