A obsessão do profissional do vinho com o sistema olfativo vai além de piadas sobre candidatos a profissão precisarem de um grande nariz. E acredite, já ouvi esse comentário sobre o tamanho do nariz ser documento no mundo enófilo ser proferido, a sério, mais de 3 vezes (não, o tamanho do seu nariz não te faz um melhor sommelier, próxima pergunta). O sommelier vive uma situação de fixação nasal.
Peça para um leigo realizar sua melhor imitação de sommelier; ele colocará uma taça de vinho no nariz após girar e comentará algo sobre “notas de frutas vermelhas e chão de floresta”. Primeiramente, parabéns ao leigo pela descrição perfeita de um Pinot Noir de entrada da Borgonha com um pouco de tempo de garrafa. A imagem do sommelier como alguém que te conta qual é o aroma correto de um vinho não é necessariamente incorreta, mas é limitada, e limitante para o profissional. É hora de ir além do nariz. E o motivo está na ciência.
Arielle Johnson, PHD em Ciência aplicada a Gastronomia e especialista em sabor, fundou o laboratório do restaurante dinamarquês NOMA ao lado de René Redzepi (ainda essa semana mais um texto sobre esse rapaz por aqui) e lançou em março de 2024 o interessante livro Flavorama: A Guide to Unlocking the Art and Science of Flavor. O livro traz insights interessantíssimos sobre a ciência por trás da obtenção e percepção de sabores específicos, mas hoje no Guia Michelana o que rege a discussão é seu capítulo sobre a complexidade e importância do aroma.
A percepção de sabor é linear, quase uma monossemia. Cada molécula que encontra a nossa língua faz com que os receptores desse músculo enviem um impulso apenas para seu cérebro. Em termos mais simples, cada molécula tem apenas um gosto, percebido por seus simples 25 tipos de receptores de sabor diferentes.
Enquanto isso, o aroma é polissêmico. Cada molécula de aroma percebida por um dos 400 diferentes tipos de receptor no epitélio no fundo do seu nariz pode ser percebida por OUTRO desses receptores, de maneira diferente. Diversas moléculas de aroma são recebidas ao mesmo tempo, disparando sinais que são enviados diretamente, sem passagem pela medula espinhal, para seu bulbo olfatório, formando uma “imagem de odor” complexa como um QR code. O resultado de todo esse processo? Você, leitor, tem 2.58 x 10^120 possibilidades de percepção de cheiros.
Ah, se fosse tão simples assim. Fica pior. Esse canal direto que sua percepção de cheiros tem com o seu cérebro, especificamente com o sistema límbico, é ainda mais complexo porque afeta nossas emoções de maneira mais intensa do que nossos outros sentidos. Quem já sentiu o cheiro da comida da avó ou do perfume do ex sabe bem. Então temos diversas rotas olfativas ao sentir o cheiro, por exemplo, de um vinho, e elas ainda são enviesadas por nossas memórias e emoções, as coisas mais pessoais que temos.
Arielle diz que o olfato é um sentido complexo até em alimentos simples, mas que itens complexos como, precisamente, o vinho incluem até centenas de moléculas que podem ser lidas pelo epitélio nasal como moléculas de aroma. Um exemplo interessante dado pela autora é da molécula de beta-damascenone, que traz, de acordo com ela, a nota mais rica e densa no aroma de framboesa. Essa molécula está presente em milhares de alimentos em diferentes graus, dentre os quais se destacam maçãs, rosas, tabaco, groselha preta, rum envelhecido e, ele mesmo, o vinho. Se seu cliente apontar qualquer um desses aromas em sua taça, ele pode estar falando de cheiro de framboesa, ou melhor, de uma percepção cerebral de beta-damascenone.
Então, se um sommelier foca demais sua explicação de um vinho em uma imagem olfativa, existe uma grande chance de que essa imagem não se traduza para o cliente da maneira esperada, ou pior, gere insegurança no cliente que não percebe as mesmas notas que o especialista e começa a duvidas de sua capacidade sensorial e intelectual - as vezes até enviesando sua percepção ou mentindo para ficar “bem na fita”.
Métodos como a terminologia do WSET existem pra facilitar a comunicação técnica internacional e agregar todos esses confusos QR codes olfativos em grupos grandes. O triunfo desses métodos é também o que os torna tão vagos e repetitivos, nos largando em um mar de produtos que tem aromas de frutas vermelhas frescas e frutas pretas maduras, navegado tanto por excelentes profissionais quanto por geradores de lero-lero.
Claro que é importante falar sobre aroma para enriquecer a descrição de um vinho. Essa deveria, porém, ser uma das diversas ferramentas de um sommelier na hora de criar uma imagem de um produto na mente do cliente, ao lado de elementos como história, geografia, métodos de produção bem explicados de maneira acessível, tipicidade. Também é importante revelar ao consumidor a complexidade que um aroma esconde, e deixar claro que não existem respostas absolutas ou um gabarito que ele deve buscar quando ele analisa um vinho. Isso alivia as tensões e inseguranças que cercam o consumidor casual de vinho.
O cliente é, no final das contas como diz a expressão, dono do seu próprio nariz.