(na imagem, o restaurante de Auntie Omakase, de Culinary Class Wars, que eu queria ir mesmo que com uma epipen no bolso)
Trago hoje minhas dores perante o tribunal das pequenas causas, ofereço meu relato como produto no marketplace de reclamações irrelevantes para a maioria porém totêmicas para o floco de neve no centro do universo que sou eu. A internet é, afinal, lugar para todos defenderem a ideia de que existe algum problema em sua vida que é menos discutido do que deveria. É tanto testemunho e reclamação que a torrente afoga as causas realmente relevantes, mas hoje o testemunho é meu, e por isso, mais importante para mim.
Quero falar do sofrimento da alergia alimentícia, e como nesse ano ele limitou cada passo que eu dei e definiu cada escolha que eu fiz.
Eu nasci alérgica a crustáceos, apenas um ponto na longa lista de alergias que recebi na loteria genética. Alergia, uma resposta autoimune intensa ao contato com algum composto químico ou partícula no ar, na comida, na pele, é um problema de saúde que existe em diferentes graus de gravidade, e a minha alergia a crustáceos é daquelas de filme, olhos vermelhos e inchados instantâneos, garganta inchando e fechando, fluxo de ar acabando. E o pior de tudo é: essa resposta não precisa de muito para acontecer. Um contato leve com qualquer produto derivado de camarão, siri, caranguejo, lagosta e cia., e até contaminação cruzada, como batatas fritas feitas no mesmo óleo de um camarão frito, pode me dar uma reação de moderada à mortal e me mandar de Macauley Culkin em Meu Primeiro Amor.
Você pode estar pensando agora “é só não comer crustáceos então, ue”. Crescendo em Belo Horizonte, uma cidade completamente continental, isso foi razoavelmente fácil. Mas nos últimos anos, morando em São Paulo e trabalhando na indústria de alimentos e bebidas, a alergia se tornou cada vez mais o elefante na minha sala, culminando em 2024, o ano em que ela se tornou oficialmente um problema diário.
Enquanto trabalhava no mercado de vinho, a alergia a crustáceos se tornou uma “handicap”, um obstáculo que eu precisava contornar com muito estudo (entendendo teoricamente o sabor de coisas que nunca provei para conseguir pensar em harmonizações) e muita conversa (com chefs perplexos em visitas a restaurantes nos quais eu precisava negar a oferta de provas do seu precioso menu). Foi quando comecei a perceber que diversas alegrias do mundo gourmet nunca pertenceriam a mim. Menu degustação de diversas etapas? Lindo no papel, mas qual é a chance de que, se eu ligar para o restaurante, eles substituirão os pratos do menu que incluem crustáceos? Omakase? O sonho de qualquer fã de comida japonesa, mas pouco provável para mim.
Um dos grandes gatilhos do meu incômodo crescente com essa alergia é a apreciação de comida leste-asiática. Recentemente, assim como milhões de pessoas no mundo, fui pega na febre Culinary Class Wars, reality show gastronômico impecável da Netflix que coloca lendas da cozinha sul-coreana para competir com chefes menos conhecidos. Nas badaladas finais da série fui atrás do menu dos restaurantes desses chefs e grande parte dos estabelecimentos praticamente não possuem pratos possíveis para alérgicas como eu. Em episódio recente do programa de variety Workdol, estrelado pela cantora Haewon (NMIXX), vemos os bastidores do restaurante da chef Auntie Omakase, um dos que mais me deixou com água na boca - e nem preciso dizer que não existe muita preocupação em separar o camarão do resto do menu.
Na culinária da Coreia do Sul é super comum a utilização de camarão seco em pó como tempero, colocado em diversos pratos e até no onipresente kimchi. Em São Paulo, vivi uma experiência traumatizante em um bar nipocoreano hypado no Paraíso, em que minha alergia foi tratada como um capricho. O menu não indicava nenhum uso de crustáceos como tempero, mas mesmo assim perguntei por segurança. O garçom teve que se informar, e então me contar que sim, o kimchi possuia camarão em pó - assim como todos os pratos que continham mix de temperos e pimentas. Pedi então um frango frito e logo comecei a sentir o ardor nos olhos. Apontei a questão para a equipe, e o que recebi foi um “mas a culinária sul coreana é assim mesmo, você devia saber”. Hoje, virei habitué do New Shin La Kwan no Bom Retiro, que oferece Kimchi vegano.
A cultura do leste da Ásia é a minha maior paixão, e nesse ano, em que comecei a viajar para o exterior com mais frequência, muitos amigos questionaram a ausência de Coréia, Japão e China dentre os destinos. Bem, meu medo é não conseguir comunicar corretamente a gravidade da minha alergia, pedir um prato aparentemente sem crustáceos e ir parar em um hospital do outro lado do mundo. Até hoje não encontrei uma solução real para esse dilema, e com isso, essa viagem segue sem previsão.
Viajar, entretanto, me deu a impressão de que existem jeitos mais humanos de lidar com a criatura alérgica. Na Itália e nos EUA vi em mais ocasiões menus que destacavam, abaixo de cada prato, alertas de alergia. Não é incomum ver, abaixo de um prato, símbolos para contém glúten, nozes, frutos do mar, lactose, dentre outros. A única dificuldade que encontrei nos EUA foi com frituras - mais especificamente, batatas fritas no estado de Massachusetts, terra dos frutos do mar. Mas mesmo quando eu perguntava se era seguro comer as batatas fritas, a pergunta nunca parecia um incômodo ou uma futilidade como ela parece no Brasil, e até sugestões de substituições gratuitas no prato por uma salada ou batatas assadas eram recebidas.
Aqui em Terra Brasilis não existe o menor esforço para acomodar clientes com essas limitações. Em visita a um Izakaya na Vila Madalena, depois de 10 min de espera já sentada dentro do restaurante me informaram que não existia um prato em todo o menu que não corria risco de contaminação cruzada, e que era melhor que eu fosse a outro restaurante. Detalhe - nada disso indicado no menu, que tinha diversos pratos sem frutos do mar.
Me percebo ficando cada vez menos aventureira gastronomicamente, temendo atrapalhar a noite de amigos se alguém marca um jantar em algum novo restaurante. E se eu não puder comer nada? E se eu me arriscar e a confraternização terminar no Pronto Socorro? Pesquiso menus suando frio, mando DMs desesperadas para restaurantes com antecedência.
Cura? Não existe. Vacinas pipocam por aí para alergias respiratórias, mas a alergia alimentícia grave segue sendo uma limitação sem solução. “É disso que a Globo não fala”, comento, trazendo minha minúscula causa para a já ruidosa ágora da opinião pública na internet.