Esse é um texto sobre tomates, mas para falar sobre tomates, falarei primeiro sobre gelo. Confie no processo.
Existe um fato sobre a história da coquetelaria que é fácil de ignorar no dia-a-dia, mas quando se instala em sua mente, nunca mais te abandona. Não conseguimos conceber um mundo sem refrigeração. A geladeira é em nossa mente um totem, algo que obviamente sempre esteve lá, congelado (risos) no tempo. Com isso esquecemos que as pedras de gelo em seu copo de whisky ou coca-cola (ou whisky com coca-cola se você tiver 60 anos e um Volvo) já foram um item de luxo, trazidas por importadores que as obtinham nas regiões frias e levavam até os centros urbanos para serem consumidas imediatamente. Ter um drink frio era um símbolo de status, e o obstáculo tecnológico a ser superado na área de refrigeração criou barreiras para a apreciação de diversas bebidas.
Toda a noção de luxo no mercado de alimentos e bebidas passou, por séculos, não só pela ideia de raridade (como grande parte do mercado de luxo) mas também por ideias de origem e distância. No primeiro período colonial, a alta gastronomia das metrópoles principais como Inglaterra, Espanha, Portugal, França e Itália se tornou totalmente desequilibrada em sabor, pois os cozinheiros da realeza e dos grandes comerciantes abusavam de temperos obtidos no “comércio” com as colônias como noz moscada, canela, pimenta e até açúcar. A fruição gastronômica era menos importante que a declaração de posição social no prato. Não abandonamos essa lógica tanto quanto parece na superfície. Veja, por exemplo, o tomate.
A ideia de fine dining no Brasil segue sendo completamente atada à importação, e é fácil perceber isso visitando qualquer restaurante de conceito italiano na cidade e encontrando tomates italianos originais, como os da região de San Marzano, sendo vendidos como uma iguaria. Na nossa sociedade que implora pelo selo de qualidade do estrangeiro, qualquer Denominação de Origem Controlada e Garantida é vista como automaticamente superior ao produto nacional, fresco. O caso do tomate é ainda mais engraçado quando pensamos que, até o período colonial, não existiam tomates na cozinha italiana… ou na Itália, para falar a verdade. É um produto da América Latina, levado para a Itália, e que hoje é trazido de volta para o Brasil, em latas, pelo dobro do preço.
Centralizar a ideia do luxo alimentício em produtos importados não é ruim apenas para o bolso, mas também para o sabor. A primeira experiência memorável que eu tive com a diferença de qualidade em uma refeição feita com produtos frescos, cultivados na região do restaurante, foi no restaurante da vinícola Ruca Malen, em Mendoza, Argentina. Perguntei ao time da vinícola como que todos os vegetais tinham um gosto tão impressionante, qual era o segredo de preparação. E o segredo era apenas que todos estavam extremamente frescos. Hoje, conceitos como Farm to Table e KM0 são as forças motrizes de alguns dos restaurantes de alta gastronomia mais premiados do mundo. Entretanto, se você pergunta a um cidadão médio, o ideal de riqueza ainda é pedir um prato de massa com tomates de San Marzano, manteiga francesa, quem sabe até uma sobremesa com chocolate belga.
Nada é simples, e um dos desafios invisíveis do movimento KM0 é exatamente financeiro. Em seu livro Buttermilk Graffiti o chef Edward Lee se questiona sobre o motivo de, na maior região de pesca de camarão de altíssima qualidade dos EUA, a costa do Golfo no sul do Texas, grande parte do camarão consumido ser importado do Vietnã, e após realizar pesquisa a sua conclusão é brutal: pelas condições de trabalho, o exótico camarão importado (que chega sem gosto e desinteressante nos EUA) é mais barato do que o camarão pescado ali mesmo, na varanda dos restaurantes de Galveston.
O custo financeiro da importação é diluído no alto volume, e o consumidor médio não liga de pagar um pouco mais por um produto que (mesmo pior em qualidade) seja importado. Um custo desse hábito porém não se torna invisível: o custo para o planeta. Rene Redzepi, proprietário e chef do NOMA, idealizou uma série para a Apple TV chamada Omnivore, e nesta série, o episódio centrado no comércio de Atum Bluefin (sim, a comida favorita da blogueira que aqui escreve) é devastador. Para garantir a distribuição dessa iguaria, um atum é levado da costa sul da Espanha para o Japão, vendido nos mercados japoneses para então ser exportado para locais como Brasil e EUA. Todo esse trajeto acontece em aviões (normalmente aviões comerciais que já estariam, de qualquer maneira, no ar, mas que aumentam sua carga assim), rapidamente, levando 2 dias nos casos mais extremos.
A magia da comida importada também nos permite acabar com a sazonalidade, garantindo através de uma cadeia global de logística que nunca exista um período sem nossa fruta ou legume favorito nas prateleiras. Mas a oscilação de qualidade segue acontecendo, pois é impossível garantir que fruta que está hoje no seu supermercado, tendo ela vindo em algumas horas do sítio perto de sua cidade em uma van, ou de caminhão da Bolívia, ou de avião da Índia, seja igual em gosto e qualidade. O produto evolui, amadurece, se torna passado, mofa, enquanto troca de mãos e veículos em sua jornada global.
O último efeito dessa cadeia de importação gastronômica está na mente. Não preciso descrever muito sobre isso, apenas terminar o texto com uma citação do chef e ativista hindi residente no México Saqib Keval, um dos proprietários do restaurante Masala y Maiz, sobre a baunilha, um daqueles ingredientes que os nobres europeus descarregavam em seus pratos para sinalizar a riqueza do período colonial, e que hoje associamos com o delicioso aroma doce de um Crème Brûlée. Saqib, mostrando um prato de camarão picante do restaurante em seu episódio na última temporada de Chef’s Table, diz:
"Quando você morde, você começa a pensar: ‘Porque eu sempre pensei que a baunilha fosse algo simples e doce? Ou algo europeu?’ A baunilha é nativa do México. E aí você percebe que a baunilha foi colonizada.”
Se o tomate é latino, faz tanto sentido assim elevar ao luxo e pagar algo extra por um tomate de origem italiana?